Mais do que uma cidade partida, o Rio é para mim uma cidade unida. Unida pelo Túnel Rebouças que liga Zona Norte a Zona Sul. Apesar de todas as rixas, o Rio só existe como o conhecemos porque é Zona Norte e Zona Sul. Há outras zonas, mas as duas ligadas pelo túnel representam os estilos diferentes da cidade.
A Zona Sul das praias, do Cristo Redentor, do pão de açúcar, maravilhosa pela beleza. A Zona Sul que lança moda, gíria, costumes, recheada de teatros, de cinemas de arte. A Zona Norte das escolas de samba, dos bate bolas, do Maracanã, das crianças soltando pipa nas ruas, dos vizinhos que conversam nos portões, das casas de azulejo. E tudo isso logo ali, ao alcance de uma passada pelo túnel.
Está na Zona Sul e quer provar da feijoada da Portela, atravesse o túnel. Está na Zona Norte ansioso por uma exposição no instituto Moreira Sales, o caminho inverso.
E por uma dessas ironias do mundo, o carnaval da Zona Norte feito pelo povo das comunidades que passa o ano preparando sua escola para desfilar, é feito para gringo assistir. E o carnaval da Zona Sul, da informalidade dos blocos de rua, é feito para o próprio carioca curtir. Há blocos de rua na Zona Norte, como há escolas de samba na Zona Sul, mas falo aqui de forma geral.
Eu, como carioca, passo meu carnaval correndo atrás dos blocos de rua. A noite, já exausta, deito e ligo a TV num movimento quase automático de anos para assistir os desfiles. Não que eu goste de vê-los pela TV. Acho que talvez seja uma obrigação imposta por mim mesma a de acompanhar o carnaval das escolas. Apesar de achar lindo todo esforço das comunidades para colocar o carnaval nas ruas, admirar o empenho de cada um deles, não consigo achar nada tão diferente de uma escola para outra, acho a águia da Portela todo ano igual e confesso que normalmente acho a parte mais divertida quando algum carro pega fogo (sem feridos, claro).
Mas acompanho. E certamente entendo mais daquilo ali do que o coitado do Cleber Machado que foi colocado para narrar os desfiles, mas não sabe a diferença entre um tamborim e um pandeiro. Meu movimento automático de assistir os desfiles enquanto o sono não vem foi surpreendido nesse domingo de carnaval quando o Império Serrano entrou na avenida prometendo mostrar o enredo “A Lenda das Sereias e os Mistérios do Mar”. Enredo de carnaval é geralmente um nome grande e pomposo para traduzir aquilo que provavelmente nós não vamos conseguir entender apenas assistindo ao desfile. Mas quando o Império começou a tocar, a mágica se fez. A Lenda das Sereias, o samba que embalou o desfile, é uma reedição de um samba-enredo de 1976 que eu não sabia que havia sido tema de escola de samba. Na minha memória a Lenda das Sereias toca com a voz da verdadeira sereia da música brasileira: Clara Nunes que com seu canto mágico, até hoje quase 25 anos após sua morte continua enfeitiçando quem escuta. .
O Rio de Nelson Rodrigues é Zona Norte. De um Grajaú que talvez hoje não se encontre no Grajaú, mas ainda é visto em outros bairros do lado de lá do túnel. Tenho certeza que nesse caso até Nelson Rodrigues abriria uma exceção. Nem toda unanimidade é burra. Porque Clara Nunes é uma unanimidade.
Clara Nunes no youtube